Verbetes relacionados:
Aristófanes
Dialética do amo e do escravo
Fichas por assunto
Fichas por ordem alfabética
Freud
Hegel


AlbertoSantos.org       Capa   |   direito   |   filosofia   |   resenhas   |   emap   |   mapa   |   Busca


Pourriol, Filosofando no cinema


vb. criado em 26/06/2013, 09h04m.

index do verbete

O DESPREZO: A CARNE

1 ‘Havia a civilização ateniense, houve o Renascimento, agora entramos na civilização da bunda’ (Pierrot le Fou).

2 ‘o cinema nos propõe viver alterações radicais do mundo, modificações globais da consciência, com a segurança de uma moldura ao mesmo tempo espacial (a tela) e temporal (a duração do filme). Um filme é uma viagem dentro do desejo do outro’ /10.

3 ‘o cinema, como diz Jean Douchet, é o próprio movimento do pensamento, ou o pensamento encarnado em movimentos’ /13.

4 ‘o filme é essa estranha e poderosa máquina de por a alma em movimento. O filme arrasta a alma para um mundo de desejo’ /14.

5 ‘como o cinema, o desejo é ao mesmo tempo claro e obscuro. Claro, uma vez que tudo nele é visível, e obscuro porque nada nele é explícito (...) o cinema encena movimentos derivados de um pensamento que pode e deve permanecer oculto, fechado no interior do visível, mas ele próprio invisível (...). O desejo não precisa da razão, e a razão não pode fazer nada por ele nem contra ele. A luz do desejo não é a do entendimento, mas a de um movimento. (...) Sartre: (...) o desejo é definido como turvo.’ /14.

6 Desejo não é vontade. ‘A vontade é clara, no fundo, clara demais, clara como uma simples necessidade, a vontade de mijar, a vontade é claramente animal ou bestial, ao passo que o desejo carrega sua escuridão própria, seu adensamento, sua profundidade, seu risco e sua noite. O desejo não tem a inocência indiferente da vontade’ /15.

7 Sartre: o ser e o nada, ou o corpo e a consciência. Ou, p/ Descartes, a substância extensa (res extensa] e a substância pensante (res cogitans]. Ambas ‘celebram no desejo a sua união, decerto turva, embora tangível. O desejo realiza o impossível: as núpcias do ser com o nada’ /15.

8 O desejo engaja a consciência no corpo, embaçando-a, fazendo-a decair (m.c.: ?). /15.

9 No desejo ‘a clara consciência se ilude, se turva e se agarra. Afoga-se, talvez, ou se dilui, depende: enfim, encarna-se’ /16.

10 acariciar com os olhos ou desejar são uma única e mesma coisa’ (Sartre) /11.

11 ‘nada, portanto, está mais vestido que uma mulher nua, desde que seja bonita’ /17.

12 ‘em que lugar exatamente se encontraria o desejável? É possível localizar o que torna um corpo desejável?’ Um não sei que, um quase nada, um sortilégio, que estaria ao mesmo tempo em todo lugar e em lugar algum. Ou alguma coisa como o sorriso do gato do país das maravilhas: um sorriso, mas sem gato. /17

13 ‘Meu desejo no se engana quanto a isso. Ele não se dirige a uma soma de elementos fisiológicos, mas a uma forma total, ou melhor: a uma forma em situação /18. Não é o corpo, mas o corpo em situação que desejamos /19. O desejo não resulta da soma das partes, por mais belas que sejam, mas da atitude, que é a do todo, e da situação, que supõe um contexto e uma concatenação singular /19.

14 O mundo, para o desejante, é obrigatoriamente animado, porque não é indiferenciado. Quem deseja rompe o mundo, porque não coincide com ele, o anima, suscita, recria: nadifica-o. A consciência nadifica o mundo. /21

15 Desejar é se descolar do mundo e de si, fugir do Ser para afirmar a liberdade do Nada. O ser é a pobreza e o nada a riqueza. ‘O herói é o Nada, consciência, desejo, momento de espírito, que escapa ao Ser — natureza congelada e idêntica a si – para transmuta-lo, abalá-lo e vencê-lo inscrevendo-o num devir’. /21-22.

16 O desejo é livre na mesma proporção em que é tolo, no sentido de cego para si /22.

EROS: A MÃO

17 ‘A [Mão] está sempre presa a um projeto, jamais coincide consigo mesma, acha-se sempre em situação’ /23-24. ‘Porque nunca se reduz à carne, a mão encarna melhor a liberdade /24.

18 Sartre: ‘o desejo é um ato de enfeitiçamento. Uma vez que não posso apreender o Outro senão em sua facticidade objetiva, trata-se de prender com visco sua liberdade nessa facticidade: cumpre fazer com que ela produza ‘liga’, como dizemos sobre um creme, de maneira que o Para-si do Outro aflore à superfície do seu corpo, que se estenda por todo seu corpo e que, tocando esse corpo, eu toque finalmente a livre subjetividade do outro. É este o verdadeiro sentido da palavra possessão’ /25-26. O que Sartre chama de Para-si é a consciência, que ele também chama de Nada, por oposição ao Em-si, o corpo. Uma mão só pode agarrar o corpo, mas se “der liga” a alma irá enviscar-se no corpo. É uma pesca estranha: na superfície do corpo, como na de uma água misteriosa, atrair a alma para tocá-la. ‘Tocar o outro em todos o sentidos do termo: tocar seu corpo para tocar sua alma’ /26. É o ideal impossível do desejo: possuir a transcendência do outro como pura transcendência, e, não obstante, como corpo /26.

19 Deleuze: ‘seria um erro interpretar o [Amor cortês] como uma espécie de lei da falta ou de ideal de transcendência; a renúncia ao prazer externo, ou seu retardamento, seu afastamento ao infinito, atesta, ao contrário, um estado de conquista no qual o desejo não sente falta de mais nada, em que ele basta a si mesmo e constrói seu campo de imanência’ /27.

20 ‘perceber um objeto, na atitude desejante, é me acariciar nele’ (Sartre) /28.

THX 1138: A CARÍCIA

21 Do contato à carícia, a distância é intersideral /29.

22 Deleuze chama de círculo das 3 maldições: ‘sentirás falta sempre que desejares. Não esperarás senão descargas. Buscarás o gozo impossível. Então o desejo é completamente enredado, capturado num círculo’ /30.

23 Felicidade do prazer-descarga e do desejo-frustração, no ideal fantasístico da felicidade. Quantas descargas e satisfação insatisfatória. Quantos prazeres sem desejo /32.

24 ‘O único objeto dentre os que o cercam que pode lhe proporcionar alguma coisa da ordem do despertar – ao mesmo tempo privando-o, aparentemente, da felicidade, uma vez que o coloca em perigo – é um sujeito. Um outro. Uma mulher’ /33.

25 ‘a carícia não é um simples roçar: ela é modelagem. Acariciando um outro, faço nascer, sob meus dedos, sua carne, pela carícia. A carícia é o conjunto das cerimônias que o outro encarna’ /33.

26 Só desejo um corpo se estiver em situação. Mas o desejo quer tirar o corpo da situação, separá-lo da sua ação, das suas possibilidades, para descobrir sob o ato , a trama de inércia: o puro ser-aí, o puro si-mesmo. Uma tentativa de despir o corpo de seus movimentos e faze-lo existir como pura carne. Reduzir o outro aos limites do seu corpo, encerrá-lo em sua carne. Encarná-lo é fazê-lo voltar à carne, a carícia é uma agressão dissimulada, uma tentativa de reduzir a liberdade infinita do outro ao seu corpo, que é por definição finito. Não quero na verdade encerrar o outro ou reduzi-lo, quero que ele seja inteiro em sua carne, se engaste nela, habite seu corpo, que esteja presente na carne. Quero tocar sua alma tocando seu corpo. ‘Provar, com a ponta dos lábios, a alma!’ (cyrano) /34.

27 Conascimento (Merleau-Ponty) pela carícia /35. Um a relação é um objeto que não tocamos, mas que constatamos ao tocar o outro /35. ‘Não existe desejo, existem apenas provas de desejo, que permitem a alguém oferecer-se como objeto e tomar o desejo do outro como objeto’ (Reverdy) /35.

28 O que desejo através do corpo do outro é sempre seu desejo. O desejo é antes de tudo desejo de desejo. Senão, não é nada /36.

CINEMA PARADISO: DESEJO QUE PERMANECE DESEJO

29 Éluard: ‘o duro desejo de durar’ /36. O desejo gostaria ao mesmo tempo de saciar-se e perseverar como desejo /36.

30 Sobre [Buñuel]: ‘O filme existe, é um objeto real, terminado, e, no entanto, alguma coisa nele continua em aberto, em movimento, cheia de futuro. Ao mesmo tempo que realiza o desejo, ele o preserva intacto’ /37. Ele não desvirtua o desejo em descarga vulgar, não troca a riqueza do desejo pela pobreza do prazer. 37

31 O travelling é a mão que procura /37.

32 O cinema, aqui, está na encruzilhada de dois devires nele inscritos: um devir pornográfico, orientado para o prazer, com um fim masturbatório, que reduz o corpo nu a um objeto comum de desejo, instrumento de catarse coletiva anônima; e um devir propriamente poético, no qual o desejo permanece desejo. Cinema Paradiso coloca face a face essas duas possibilidades do cinema, essas duas concepções do desejo.

33 A primeira, pornográfica, herdada da igreja, baseia-se na ideia de um desejo condenado a se esgotar em descargas de prazer, que devemos prevenir por meio da atividade de censura. O padre lançou a tripla maldição sobre o desejo: a da lei negativa, a da lei extrínseca e a do ideal transcendente. A lei negativa é a lei da falta (o primeiro sacrifício, a castração). A regra extrínseca, a do prazer (o segundo sacrifício, a masturbação). E o ideal transcendente, a fantasia inacessível (o terceiro sacrifício, a fantasia).

34 O padre é o superego oficial da comunidade, o cinema, na verdade sala paroquial, promete o paraíso mas contra um fundo de ameaça de inferno.

35 Censura e descarga são duas faces da mesma moeda. Necessário libertar o desejo da excitação artificial causada pelo interdito e pela censura, a fim de fazer alcançar sua verdadeira dimensão poética.

36 A coisa mais rara que existe: o amor realizado no desejo que permaneceu desejo. O sucesso deixa o protagonista deprimido porque mascara um fracasso mais profundo. Dependendo da maneira como um desejo triunfa ele pode se condenar.

37 A história da sala metaforiza o devir do cinema: estacionamento ou multiplex, dá no mesmo, há uma maneira de sobreviver que equivale a morrer.

BOM TRABALHO E TOURO INDOMÁVEL: O OLHAR QUE MATA


38 O [Desejo] é uma raiva. O homem, diz Hegel, é um animal raivoso. E de que? De aparecer sob a forma de um corpo, de um animal feito de carne, quando se sabe espírito.

39 O amor é uma invenção tardia na história humana. O desejo primordial incide sobre outra coisa, mais originária. Desejo de reconhecimento. Provar que não existimos positivamente como objeto natural, mas negativamente, como espírito. 43

40 Provar que é um homem, i.e., um espírito. A coragem não é ausência de medo, é medo negado. O medo é sua matéria-prima. Quando sentimos medo, somos animais. Superar o medo então é provar que somos um espírito capaz de abstrair da realidade natural. Apenas um homem capaz de arriscar a vida provará que não é um animal, i.e., humano. 44

41 É o olhar de um homem reduzido ao seu olhar. Um puro olhar que parece dizer: sou aquele que resta quando não resta mais nada. O desejo de reconhecimento não deriva da relatividade do resultado esportivo, mas do absoluto do espírito. Jamais obedecerá ao instinto de conservação animal. 45

42 Os animais também lutam mas sempre por razões naturais, por uma coisa que não coloca em questão o primado da sobrevivência. Os animais terminam sempre por se curvar, curvam-se à lei natural. O Touro indomável, por sua vez, está disposto a ir além. Para afirmar sua natureza sobrenatural, antinatural ou contra natural. 46

43 No fundo o desejo humano é a raiva contra a natureza, inclusive uma raiva antinatural . Raiva contra o que é, a natureza, em nome do espírito, o que deveria ser. O espírito é uma raiva. 46

44 Arriscar a vida enfrentando a natureza ainda é natural. Os animais fazem isso todos os dias. É preciso então um adversário. Um inimigo, digno desse nome. Os piores inimigos formam sempre um par estranhamente fraterno. 48

45 Porque os homens lutam? Por nada. Pelo direito, que é uma invenção antinatural, que promete substituir o relativo das desigualdades naturais pelo absoluto de uma igualdade abstrata. Por Deus, que só dá sentido as nossas vidas sob condição de não existir, de não ser coisa entre as coisas. Pela honra, que não é nem órgão, nem doença, pela honra, que não é nada e que pode facilmente custar a vida. Os animais nunca lutam por nada, apenas um homem é capaz disso: logo, esse nada é tudo. É única prova que ele pode dar de sua natureza espiritual. Um nada, que é tudo: não existe melhor definição do absoluto. 55

MENINA DE OURO.

46 Hegel fala do desejo de reconhecimento, do desejo de ser reconhecido como homem. Não toma o homem no sentido de viril, mas de ser humano. Mas o reconhecimento se dá sempre no Universo e num modo masculinos.

47 Para Hegel as mulheres são animais. Adoráveis e delicados, mas incapazes de colocar a vida em jogo pelo reconhecimento. Não é falta de coragem, é questão de natureza. As mulheres, por natureza, estão do lado da vida, elas a protegem, criam, conservam. Não podem arrisca-la por nada. Uma garota bem sucedida é sempre um garoto que não deu certo. 57

48 Para Hegel o objetivo é viver em paz num estado que protege o que Hegel chama de vida burguesa, que corresponde aos valores da vida animal: instinto de sobrevivência, defesa dos interesses particulares, aglutinação em torno da família. O objetivo para o homem é gozar da existência como animal, mas um animal bastante peculiar, uma vez reconhecido como humano. 57

49 Na relação mestre-aprendiz a pessoa é julgada, mas exclusivamente pelo valor do seu trabalho. O mestre faz aprender a obedecer à lei indiferente, e portanto justa, do exterior (de fora da família). 59

50 Comte: deve-se aprender a resolver o dentro (os desejos) pautado pelo fora (a realidade). Educar uma criança e fazê-la sair de casa: ex ducere : conduzir para fora de. 61

51 Como reconhecer um professor? Ele não quer você, não precisa de você. Anaxímenes expulsa Diógenes a cajadada. Um modelo educativo à moda antiga. O aluno deve mudar de natureza, tornar-se outro. 61

52 O reconhecimento não vem de provar aquilo de que você já se sabia capaz, mas da prova do Real, isso é, aquilo de que você não se sabia capaz. Sim, o reconhecimento pressupõe uma luta. A única maneira de obter esse reconhecimento é que ele venha do exterior, que pessoas que você não conhece e que não lhe querem bem. “A liberdade de espírito não é a independência que existe fora de seu contrário, mas a independência que conquistamos triunfando sobre o contrário, não fugindo do contrário, mas lutando com ele e subjugando-o ” (Hegel). O único professor verdadeiro é o seu inimigo. 62

53 Aclamação encarna o reconhecimento social do risco que ela corre ao lutar . 63

54 Um nome digno desse nome não é meramente um nome de família. Fazer um nome é justamente ter seu nome fora do círculo familiar, nas multidões, nos jornais.

55 Fazer, e, fazendo, fazer-se. Jules lequier.

56 Respeito, que é o verdadeiro amor. 69.

O DESEJO MIMÉTICO, O DESEJO DOS OUTROS.

57 Não desejamos as coisas porque elas são boas, mas elas são boas porque as desejamos. O desejo não é alguma coisa que temos, é algo que somos. O objeto desejado pelo outro tem um preço infinitamente superior ao objeto que ninguém deseja. O que eu quero não é objeto sozinho, é um objeto em situação, animado pelo outro. 71

58 Spinoza: se imaginamos que alguém extrai alegria de uma coisa que só um pode possuir, faremos tudo para que ele não a possua. 75

59 Estão do mesmo lado do desejo: do outro lado do espelho. Eles vivem do desejo dos outros com a condição de não o sentir. Desejar segundo o desejo do outro é constituí-lo como modelo. Porém, a partir do momento em que você adota um modelo, você o transforma no mesmo instante num obstáculo, você constitui um modelo obstáculo, dando origem a uma rivalidade. 77-78

60 ”Las Vegas lava os pecados de sujeitos como eu. É uma lavagem moral. Tem a mesma função que Lourdes para os aleijados”. 78

61 Blow-up: sessão de fotos filmada como ato sexual, mas sem sexo. Captamos o objeto, mas não o capturamos. Drama da sociedade de consumo: ela apresenta como desejáveis objetos que nunca são consumíveis. Contemplado fora do seu contexto o objeto não passa de um dejeto. Uma coisa fora do mundo do desejo.

62 Sucumbimos ao desejo mimético porque ninguém é infenso a ele. “Emulação, que não é outra coisa senão o desejo de algo que nasce em nós porque imaginamos que outros seres semelhantes a nós têm o mesmo desejo” Spinoza. Desejo imitado. A emulação é a verdade do desejo. Inscreve a priori o indivíduo numa trama social que o determina sem que ele se dê conta disso. Desejo mimético tem origem social, o processo que determina previamente o indivíduo. Espinoza denunciava a ilusão do livre arbítrio, da qual julgava Descartes uma vítima. Girard denuncia a ilusão do livre desejo.

63 Sutil conhecimento dos mecanismos do desejo humano: num mundo uniforme, como demonstrar diferença? Exibindo um sinal cujo preço todos conheçam. A necessidade de particularização cria valor a objetos que se reduzem a puro signo: o preço de vendas é puramente arbitrário, o objeto não tem valor por si mesmo mas só o valor que tem aos olhos dos outros, que sabem seu preço. O que tem valor é que os outros o saibam.

64 Maldições do desejo, a lógica da falta e da eterna frustração. Quando desejamos o que todos desejam, o desejo é condenado a sofrer a lei exterior, a falta do gozo impossível.

65 Quando a paixão mimética intervém, o objeto da rivalidade torna-se episódico, passando a segundo plano, completamente ofuscado pelo valor da competição.

66 Não possui singularidade alguma e viveu na ilusão de ser único. Logo, ele é o brinquedo de sua consciência. Julgava-se único, não é ninguém.

67 Não basta o objeto ser apresentado como desejável, se não está em situação. O valor de um objeto não desejado é nulo.

68 Já um objeto inútil não tem limitação. Já que não serve para nada, pode servir a todos.

69 Um top model é um modelo que todos imitam, inclusive os modelos. É quase abstrato, mais uma ideia que um indivíduo, a encarnação da antiga ideia de Beleza. Platão: há mais realidade na ideia de beleza que nas coisas belas. Por isso a ideia de beleza é eterna. ”[Helena] de Tróia sobreviveu à sua beleza” (Grenier).

70 Num ambiente humano a maneira mais simples de criar valor é engendrar um desejo mimético. O que faz nascer o desejo não é o objeto em si, mas o objeto em situação, carregado, salvo por um modelo. Para iniciar o contágio, ele precisa receber um primeiro impulso. Só desejamos o que está em movimento. Por isso se fala em lançamento de um produto.

A LOUCURA DO DESEJO

71 ”oh! tomai cuidado, meu senhor, com o ciúme; é um monstro de olhos verdes que zomba da carne de que se alimenta” [Shakespeare].

72 o ciúme é essa contradição monstruosa, feita de amor e ódio. o inferno é a mistura. o ciúme cava seu próprio túmulo, alucina o real, não precisa de provas, ele as inventa, um ciumento sempre tem razão, porque provoca exatamente o que teme e, sem perceber, deseja:o ciumento quer ter razão.

73 ninguém é louco: enlouquece. enlouquecer é perder de vista o objeto e passar a ser interessar apenas pelo modelo. o ciumento fica menos hipnotizado pelo objeto que pelo rival. Para afirmar seu valor ele precisa que sua mulher seja desejada por outros. Não sabe desejar de outra forma senão segundo o desejo do outro. a patologia começa quando procura voluntariamente o obstáculo, cria-o, para transformá-lo num modelo. Não desejar sua mulher é o que negar o valor do que ele deseja.

74 —o senhor não pode me curar, doutor. / — por que? / — porque o senhor está bom, e eu não.

75 Girard: o problema da psiquiatria é que ela dá razão aos doentes. confirma os loucos em seu delírio, que lhes permite ser singulares. Quando alguém pensa que é o único entre os demais, aí começa a patologia. pois a realidade é o duplo: possamos nos vida desejando como os outros, segundo modelos externos, quando recusamos aceitar isso, e pensamos que podemos realmente desejar por nós mesmos, enlouquecemos.

76 o que é o [Romantismo]? A mentira do indivíduo como ilha. Ele afirma a insularidade do indivíduo, incompreensível do exterior.

77 acha-se que o louco está sozinho, mas ele está sempre numa relação de rivalidade com um [Duplo] imaginário ou real, pouco importa. ser normal não é tentar fugir do desejo mimético, de que ninguém foge, mas não sucumbir a ele a ponto de perder de vista o objeto e concentrar-se só no modelo. Louco é quem se concentra só no obstáculo esquecendo o objeto.

78 a [Loucura] não suporta a resistência do Real, construindo um mundo onde nada resiste.

79 “como o mundo intelectual é desprovido de hierarquia, e portanto privado de critérios objetivos, todos os seus integrantes estão fatalmente submetidos ao julgamento indireto dos seus pares. Na verdade, nesse mundo, o número de indivíduos passíveis de afeções paranóicas é considerável” 118.

80 Quando nos consideramos absolutamente diferentes dos outros, a única maneira de dar vida a essa ilusão é a loucura.

81 o amor é, para Freud, a coisa mais próxima da psicose.

82 o desejo amplia o objeto. Quando caímos apaixonados, caímos do Real. ficamos isolados, sozinhos, o objeto do amor torna-se o único a ter valor.

83 “Um olhar não se pode olhar. assim que olho para o olhar, ele desaparece, tudo o que vejo são olhos” Sartre. 130

O TEMPO DO DESEJO

84 Ser humano é estar em falta.

85 Será que estamos sempre ironicamente numa Split screen, cada qual reduzido a existir no âmbito de seus limites, de seu espaço próprio, de seu corpo? Seria possível um encontro de verdade quando estamos fundamentalmente separados?

86 Aristófanes, no banquete: os pares, estendendo os braços, agarrando-se ao desejo de se reunir, morriam de fome e de preguiça, pois não queriam fazer nada em estado de separação. Duas criaturas fundidas numa única privam-se de todo tempo verdadeiramente criativo. Por que criar? Não lhes falta mais nada. Recriaram o andrógino primordial. A vida não poderia lhes trazer mais nada;a vida a dois torna-se uma espécie de morte, agradável mas monótona.

87 O emprego do tempo, eis a desgraça da solidão.

88 Era feliz pois não tinha mais desejo. Ser feliz, de certa maneira, é sempre esquecer até a possibilidade da Felicidade. Tão logo um futuro desponta, com ele pode renascer a Angústia.

89 Hegel, três tipos de Tempo. Natural, eterno presente cíclico, tempo vegetal e mineral. O tempo animal, dominado pelo presente do instinto, pode incluir o passado, a criação de respostas condicionadas em função do já conhecido. O tempo humano é o único que se abre para um futuro.

90 Desobedecer à voz da natureza é sair do tempo natural para afirmar um tempo humano e fazer o futuro prevalecer sobe o presente.

91 Bergson: dois tempos. O tempo comum, do relógio, objetivo, e o tempo da consciência, individual, numa interioridade onde nada se equivale: uma hora nunca passa da mesma maneira para uma mesma consciência.

92 A matéria prima do cinema é a duração. O tempo da consciência, não o do relógio. “A montagem perturba o curso do tempo, interrompendo-o, e, simultaneamente, confere-lhe uma qualidade nova. Sua distorção pode ser um meio de sua expressão rítmica. Esculpir o tempo” (Tarkovski).

93 Descartes: “as paixões fazem surgir tanto os bens quanto os males, que elas representam muito maiores do que são, de tal forma que nos incitam a procurar uns e fugir dos outros com maior ardor e cuidado do que seria conveniente”. As paixões nos fazem sair do Reino pobre da necessidade para entrar no artifício e na riqueza do mundo do desejo.

94 [Hemingway]; “os quadros ficam mais vivos, mais claros e mais belos quando se está com a barriga vazia, roído pela fome”.

BELEZA AMERICANA, A FANTASIA

95 “Os ignorantes tampouco filosofam ou desejam ser cientistas, pois a ignorância tem justamente isso de aborrecido: não tendo beleza, bondade nem ciência, julgam-se suficientemente providos dessas qualidades. Outra, quando não acreditamos que nos falta uma coisa, não a desejamos” (Platão, o banquete).

96 Quando buscamos fora de nós a regra do nosso desejo, decretamos nossa infelicidade, uma vez que nos percebemos então no modo da falta.

97 A consciência da falta é a primeira riqueza, talvez a única.

98 Ferramentas e artifícios do cinema para nos fazer compartilhar a revolução perceptiva do desejo. Ampliação espacial (close e zoom)e temporal (câmera lenta) do objeto. A câmera lenta é o equivalente temporal do zoom é do close, amplia o objeto no tempo.

99 Se um filme costuma mostrar um desejo que procura se satisfazer, é muito raro que mostre esta satisfação. “A bela adormecida termina sempre quando ele a acorda. Depois não sabemos o que é feito deles, felizmente. Porque não deve ter durado muito” ([Godard]). O cinema quer conservar a energia do gesto, seu desejo. Mas não a conclusão, que é também a sua morte.

100 Spinoza: a única ação completa e verdadeira é o pensamento. Pensar, eis a ação do espírito. A sensação da experiência da eternidade nos são oferecidas quando somos no sentido próprio do termo, isso é, quando compreendemos alguma coisa.

CASSINO, A ELETRICIDADE DO DESEJO

101 Mulher-bibelô e mulher-paisagem. Marilyn era um poeta de rua tentando recitar versos para uma multidão que lhe arranca as roupas.

102 Não falamos da paisagem à qual a mulher se assemelha, mas da paisagem que só mesmo tempo ela encerra e percorre, ou na qual ela se inscreve.

103 Você não deseja alguém ou alguma coisa, deseja sempre um conjunto.

104 [Proust] diz sobre Albertine avistada que ela envolve ou exprime a praia da rebentação das ondas.

105 Desejamos a paisagem, que não é simplesmente a situação atual ou atitude presente do objeto, e sim todo o possível envolvido nele, o mundo que ele abriga, não só o mundo em que ele se situa. A paisagem é a situação mais todas as situações possíveis, que eu ainda não conheço.

106 A paisagem do dinheiro é troca, movimento, liquefação das relações. O dinheiro é um fluido, um líquido.

107 La Rochefoucauld: apenas as grandes almas têm grandes defeitos.

108 O desejo não pertence a alguém, ele circula entre. Não é um ser, mas uma relação. Está entre as coisas, entre um sujeito e as coisas, entre um sujeito e outro sujeito. É a eletricidade que circula ente as diferenças de potencial. A eletricidade de uma imagem relaciona-se com a distância, com a diferença entre os dois polos da metáfora. “A terra é azul como uma laranja”.

109 A imagem é um acelerador do psiquismo. O desejo não deve ser concebido negativamente como falta, mas positivamente como viagem, eletricidade ou aceleração.

110 ”Há homens que morrem sem ter — salvo por breves e aterradoras iluminações — suspeitado o que era o Outro”. Sartre.

ASAS DO DESEJO

111 O anjo encarna atrás da promessa da bela inquietude humana, que não deve ser confundida com angústia. Esta é uma pausa, da inquietude é um movimento. Toda angústia é mortal, é a morte na vida, mas a inquietude é vida na vida, a vida que não cessa de se ativar, a vitalidade da vida.

112 No Górgias de Platão Sócrates enfrenta Cálicles, para quem é preciso satisfazer os desejos de maneira regrada ou desregrada, pouco importa, o que conta é a intensidade e o movimento. O homem cujos tonéis permanecem cheios não saboreia mais nenhum prazer, vive como pedra, sem sentir alegria nem dor. Mas a graça da vida está em verter no recipiente o máximo que pudermos.

113 Dos modelos de vida opostos, um que considera que a satisfação é ter algo no tonel e mantê-lo bem fechado: vedar o desejo para satisfazê-lo. Do outro lado, um adepto do ritmo, que aceita as variações e nada teme. Ficar o movimento, a passagem.

114 O anjo desiste da felicidade angustiante do cheio, vira humano para conhecer a falta. A felicidade de uma vida humana consiste justamente em renunciar ao infinito, aceitar nossa condição e nossa oportunidade: vida vivida no interior e segundo o ritmo, uma vida feita de fome e sede, inquieta e rica dessa inquietude.

115 A inquietude é a consciência ativada pelo desejo. Felicidade não é ter o que se deseja, é desejar sempre mais o que se tem. O desejo é uma pulsão insuportável, mas a ser perpetuada. O homem preza acima de tudo os seus desejos. Não bebe para se libertar da sede. A felicidade de beber seria negativa se nela não persistisse a felicidade de ter sede. Na inquietude, o desejo da felicidade já se realiza na felicidade do desejo.

116 Tão vazio e pleno, rico de um mundo que ao mesmo tempo se oferece e escapa, rico de desejo. O desejo de ter sempre mais deixa de ser sonetos de uma fala patologia e se torna expressão de uma riqueza essencial. “Então, avante na história do mundo, ainda que seja para segurar uma maçã”. Não se trata de possuir, mas de simplesmente segurar.

BIBLIOGRAFIA

117 P012f Pourriol, O. (2012). Filosofando no cinema. Rio de Janeiro: Zahar.